uma política de viveiro

No dia 11 de Maio visitamos juntos a experiência do viveiro escola de plantas em São Miguel Paulista. Logo na entrada, fomos recebidos com um enorme abraço por uma mulher que se apresentou como “Vizinha”, “pois é assim que todos me conhecem por aqui“, nos contava. Naquele momento, outras mulheres terminavam de pintar a cozinha recém reformada com cores muito vivas que faziam uma composição exuberante com todo o verde do terreno. “Aqui vamos fazer almoços, comer o que plantamos”, elas contavam sobre os planos de um futuro bem próximo. Já nos primeiros minutos sentíamos que não tratava-se apenas de um lugar, mas de um território que nos convocava a um outro regime de sensibilidade e atenção.

Era Vilma quem nos esperava para uma visita ao viveiro. Ela nos contou sobre a entrada naquele terreno e como foi difícil preparar a terra para o cultivo pois tratava-se de um terreno que abrigou um depósito de entulhos por muito tempo. Antes disso, elas trabalhavam em um outro terreno cedido pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), mas por conta de uma contestação fundiária, elas tiveram que sair. Hoje, elas estão em um outro terreno, também cedido pela CDHU, tentando criar uma forma mais segura de fazer com que o terreno permaneça sob gestão do Viveiro.

 “Quando chegou aqui, a gente batia com a enxada e era só pedra. Eu dizia que não ia dar em nada, que a terra era muito ruim“. Ela conta com felicidade de como foi convencida do contrário.

Diante de toda a dificuldade, Vilma nos falava sobre a ciência do viveiro, um modo de conhecer que instaurava uma prática permanente de atenção à terra, às pessoas que sustentam o viveiro, aos saberes que atravessam aquele lugar e à uma inteligência de composição capaz de relacionar todos esses elementos e de se deixar convencer pelo que pode “pegar”. Compreender aquela terra, habitar sua história, seus problemas, escutá-la. Nesse momento crítico inicial, elas contaram com algumas assessorias, como por exemplo de pessoas com experiências na permacultura. “Permacultura eu chamo de cuidar da terra mesmo“. A criação do viveiro abria assim uma situação de aprendizado e traduções na qual a aliança entre diferentes saberes ( e seus equívocos produtivos) tornava-se imprescindíveis para fazer pegar o plantio. “Por exemplo, eu fui fazer um curso de PANC (plantas alimentícias não convencionais) que na roça as pessoas sempre chamaram de mato de comer.”  Retomar uma terra, conta Vilma, tem a ver também com reativar alguns saberes que foram adormecidos – uma ciência de reavivamento da memória do corpo. “Sabe, aqui quase todo mundo veio do nordeste, já trabalhou na roça. Então, muitas mulheres aqui já sabiam muito bem mexer com a terra, já sabiam porque faziam roça. Mas chegando em São Paulo, a gente foi esquecendo de tudo“.  “O capitalismo“, ela completava. “É uma erva daninha e vai estragando tudo por onde passa“.

Em um momento de expansão da monocultura predatória e de uso intensivo de agrotóxicos, o viveiro escola emerge como uma força do comum sustentado por praticantes dedicadas que foram capazes de criar uma condição de fertilidade, mesmo diante de uma situação adversa, a partir de um trabalho de investigação (da terra e de si), experimentação, composição de saberes e uma política de cuidado. Se o capitalismo é erva daninha, como sugeriu Vilma, as práticas de “fazer pegar” um cultivo, uma terra, uma situação capaz de produzir uma outra temporalidade em meio aos fluxos desnorteantes da metrópole constituem-se como uma política de viveiro, aquela que insiste no mundo em que vivemos e nas suas potencialidades, que recupera nossas capacidades de fazer-junto, que reconhece os modos de se relacionar com a terra e não apenas com um território. Uma política (e ciência) que não separa o corpo do conhecimento, a terra da memória. Nosso percurso guiado  pelo terreno foi ao mesmo tempo estético e sensível “olha como essa folha é linda, pra mim a taioba é a rainha das plantas“, mas também uma arte pharmakon capaz de investigar as potencialidades de cada planta e também o seus perigos “esse boldo aqui, muita gente toma quando tem dor no estômago, mas ele não é bom para quem tem a pressão alta. O melhor é o boldo chileno, menorzinho”.

A história do viveiro contada por essas mulheres é uma história de encontros. “Antes ficava cada uma na sua casa, todo mundo com depressão, né?”, nos disse a Vilma. Ela contou também que depois aprendeu que mexer com a terra favorece a produção do hormônio da felicidade – é por isso! – ela constatava. A experiência do Viveiro de plantas pode ser pensada como uma prática de “Repovoar nossas histórias devastadas” como sugere Stengers ou como uma “recuperação do poder usurpado” como defendia Beatriz Nascimento. Relatos sobre memórias, deslocamentos, corpo, doença e cura – a política do viveiro é aquela que pratica uma ciência engajada no mundo da vida, uma poética técnica que se sustenta por uma inteligência da situação, ou seja, aquela que é capaz de pensar com o meio: a condição da terra, os saberes disponíveis, as relações de afeto e confiança que podem ser potencializadas, inclusive inter-espécies.

O viveiro é uma escola justamente porque assume a condição de aprendizagem não como uma prática de transmissão de conhecimento (dos que “sabem” para aqueles que “acreditam”), mas porque abre uma possibilidade de alianças entre saberes, uma tecnologia de pertencimento que vincula aqueles que praticam e sustentam uma experiência em comum. Canteiro aberto, ciência da imanência. Nada é simples – a insegurança da posse do terreno é um problema permanente assim como a fragilidade econômica daquelas que praticam o viveiro. O viveiro de plantas constitui-se como uma experiência não-proprietária e um dos principais desafios, contam elas, é convencer as pessoas do bairro que o viveiro é de todos e que sua sustentabilidade depende de uma economia afetiva de apropriação do lugar e do cuidado com ele. A apropriação, defende Lefebvre, é uma  “modalidade superior de liberdade”, mas a liberdade, sabemos bem, faz parte de um trabalho constante e delicado de fazer relações a partir de nossas vulnerabilidades e diferenças. Não é por acaso que uma das mulheres mais importantes para a existência cotidiana do viveiro seja conhecida no bairro pelo apelido de “Vizinha”, uma imagem poderosa que nos remete às praticas de cuidar das relações, da saúde dos circuitos de trocas – não uma identidade política, mas uma forma de se relacionar com o mundo e com as pessoas que habitam um mesmo território afetivo e existencial. A política de viveiro exige, portanto, uma habilidade de fazer vizinhança (entre pessoas, saberes e espécies).

O viveiro é também um território negro da cidade, um território que intui a história de uma terra indígena silenciada por muitos séculos; uma terra sustentada por mulheres, em sua maioria, negras, nordestinas, feitas de seus deslocamentos e permanências, de seus cuidados, técnicas e experimentos de curas. Quilombos, Aldeias, Ocupações e retomadas de terra – a cidade é uma luta permanente pelo direito de contar outras histórias, histórias que são capazes de desconcertar a legitimidade dos que planejam e governam. O viveiro integra assim a cartografia dos novos quilombismos que insistem na paisagem urbana produzindo outras formas de vida, outras possibilidades de viver junto e outros modos de conhecer – que nada tem a ver com um traço de “sobrevivência cultural”, como ensinou Beatriz Nascimento, mas como fenômeno político, filosófico e contemporâneo.

Para conhecer mais sobre a experiência e o trabalho das mulheres do viveiro: https://www.facebook.com/mulheresdogau/