Cartografando Vulnerabilidades

A segunda aula do curso Laboratórios do Comum foi dividida em dois momentos. Na primeira parte da aula retomamos a apresentação da proposta do curso-laboratório, realizando uma breve contextualização sobre a emergência dos chamados laboratórios cidadãos, laboratórios de inovação social ou laboratórios de prototipado, em relação ao campo de ciência cidadã. Em seguida partimos de um diálogo com o texto Comunidades de atingidos, o comum e o dom expandido, do Antonio Lafuente e Alberto Corsín, para introduzir a temática do Comum, neste caso, sob uma perspectiva específica. O programa e os textos dessa aula estão disponíveis neste link.

Nesta sessão, interessava-nos destacar o Comum em sua dimensão relacional e epistêmica, ou seja, que só existe na relação (em ato) e que demanda conhecimentos/saberes para que seja percebido, cuidado, produzido e reivindicado. Também queríamos introduzir a relação entre Comum e “comunidade” política, no sentido de que só há comum se houver uma comunidade que o sustente e o produza (comunidade aqui pensada como sujeitos interdependentes, que cooperam e que se co-responsabilizam).

A proposta de “dom expandido” de Lafuente e Corsín, permite introduzir uma outra camada à economia política do dom/dádiva, como antídoto às leituras da dádiva enquanto economia do endividamento. Ao contrário, o dom expandido permitira contraefetuar o Comum. Neste caso, o valor do dom procede de sua capacidade de comprometer a todos em uma tarefa de construir (experimentar) comunidade, o que também significa reinventar a comunidade política que o sustenta. Tal abordagem contribuiria para se evitar as dinâmicas neoliberais de expropriação ou de apropriação exclusiva do Comum (quando o Comum é convertido em recurso que potencializa a economia capitalista).

No texto de Lafuente e Corsín também nos deparamos com alguns sentidos para o Comum: o que é de todos e não é de ninguém; o que está fora da economia de mercado e da economia pública (não entra diretamente na conta = externalidades econômicas, recursos sociais, simbólicos…); sua não coincidência com o livre acesso, o Comum sempre depende de normas e práticas que regulam a forma de acesso, uso e apropriação; seu caráter relacional e emergente (não coisificação ou objetivação do comum).

Na segunda parte da aula demos início ao trabalho prático do laboratório. Ao tomar nosso curso como experimento de um Laboratório do Comum, propomos que sua realização durante o semestre instale algumas práticas e arranjos sociotécnicos que contribuam para a emergência desse laboratório do Comum.

Primeiramente, o que está em jogo é experimentar e constituir coletivamente um outro modo de conhecer. O laboratório é uma prática de aprendizagem e produção coletiva de conhecimentos. Trata-se de criar um conhecimento situado, encarnado, territorializado e parcial. Ele tem história, corpo, localidade, subjetividades, experiência. Nosso laboratório é feito entre tod@s, ele está no mundo e não fora dele.

Como parte do percurso vamos criar trajetórias de investigação coletiva sobre o Comum. Mas qual Comum? São vários os Comuns em que estamos implicados, mas em se tratando de uma experiência na universidade, partimos de uma problematização das relações entre universidade e mundo extra-universidade, para tentar visibilizar problemas que afetam nossa condição de estudante e/ou professor. Afinal, para eu estar ali na sala de aula, o que é necessário?

Lançamos então uma simples pergunta: “O que está pegando?”. A questão visa tornar visível um campo de vulnerabilidades, situações, temas que atravessam o mundo da vida, e que participam, inevitavelmente da qualidade da minha presença ali na universidade, ou mesmo, que revelam os sentidos (ou a ausência dele) da experiência universitária, do trabalho etc.

Distribuímos papéis adesivos (post-it) para que cada um pudesse anotar uma palavra ou frase bem sintética. Em seguida, cada estudante foi para a frente da sala e colou na lousa o seu papel, fazendo um pequeno comentário sobre cada um deles. O clima entre tod@s foi de muito acolhimento, e de forma tácita foi se constituindo um clima de abertura e escuta. Os relatos foram muito relevantes e sinceros sobre as questões que estão tocando cada um delxs. Houve um cuidado coletivo no estímulo à fala, no respeito do tempo, nos olhares. E o melhor, esse mapa de vulnerabilidades foi sendo feito ali na lousa, com uma certa alegria contagiante. Sim, eram muitas as vulnerabilidades e elas eram comuns. O reconhecimento daquilo que era partilhado emergia muitas vezes num sorriso de cumplicidade. Ademais, tod@s estavam ali bem presentes, o que por si só já é uma forte indicação da biopotência e da resistência de tod@s para construir estratégias e formas de vida para estarem ali. Como conhecer, fortalecer e ampliar essa potência Comum? Pistas e rastros para seguir investigando.

No dia seguinte, transcrevemos os adesivos em categorias. Tentando respeitar ao máximo o comentário feito e a palavra utilizada. Isso gerou uma longa lista de palavras. Cada participante escreveu de 2-5 adesivos. Em seguida, inseri a lista de palavras num programinha pra fazer uma “nuvem” de palavras-chave. Usei este aqui: https://www.jasondavies.com/wordcloud/

O resultado está abaixo. Quanto maior a palavra maior foi a sua incidência. A imagem gráfica deve ser lida a partir da seguinte pergunta: “o que está pegando”? Quais as dificuldades, problemas que estão me atravessando, na qualidade de estudante/professor?

Nos dias que se seguiram, solicitamos que os estudantes enviassem, de forma anônima, um breve comentário sobre a experiência. Para criar um canal anônimo (pois considerava que era importante não expor a autoria do comentário), criamos um login-senha de uso genérico para tod@s na plataforma hubzilla.com.br . Copiamos abaixo os comentários recebidos:

“Nunca uma abordagem acadêmica me impressionou tanto quanto aquela. Pensar em articular vida acadêmica e poder pensar as próprias questões me deu esperanças sobre um processo educativo de qualidade, tal como proposto por Paulo Freire. 🙂 “

” somos todes precários! “

“Procuro compreender questões e fenômenos que dentre algumas motivações sempre relevo o como e o quão aquilo me incomoda. Colocar as vulnerabilidades como cartografia inicial me demonstrou o quão importante é tornar visível esse sentimento e o quanto esse exercício pode nortear o processo de conhecimento “

“Precisei de um certo distanciamento para absorver a nossa última aula.
Foi intenso e importante. Precisamos repensar a atual estrutura educacional para que sejamos capaz de desenhar novos horizontes (mais leves e justos). “

“Nunca sai tão leve e feliz de alguma aula na graduação. Foi extremamente nova essa experiência de nossas verdades particulares expressadas e trocadas, o que de fato, nos humaniza dentro da sala de aula e nos trás mais para perto um do outro. Essa troca, comunicação e relação que houve, foi extremamente enriquecedor e com uma sensação de esperança para comigo, conosco enquanto grupo de sala e para com o mundo. As leituras no decorrer do semestre me deram um entusiasmo, mas a aula passada foi o elemento chave para realmente querer e esperar toda a semana esses encontros.”

“Nossa atividade foi muito importante, nos vemos com as mesmas angústias e preocupações, mesmo estando em momentos diferentes das nossas vidas. Isso nos aproxima. É preciso conhecer pra poder fazer diferente… “