Transitar do governar para o habitar

Na quarta aula do curso retomamos as proposições de Silvia Federici sobre as lutas feministas de defesa e promoção dos Comuns, problematizando e politizando as tensões entre o trabalho reprodutivo e produtivo, entre vida privada e pública. O texto da aula de hoje, do filósofo e ativista espanhol Amador Fernandez-Savater, é muito inspirado pela perspectiva feminista. Para nosso curso, o argumento do texto contribui para que pensemos o percurso de investigação e ação sob um outro “paradigma” (link para textos da aula 4).

Savater produz uma ficção política ao criar uma tipologia sintética entre dois grandes sistemas (epistemológicos e políticos): o paradigma de governo e o paradigma do habitar.
Em cada um desses dois modos (é evidente que ele opera uma simplificação), ele aponta como exercitamos uma certo regime de sensibilidades (modos de sensação e percepção); um certo regime de conhecimento (relações entre o pensamento e o mundo); e modos de fazer (como agimos com ou sobre a realidade).

Essa reflexão do Savater foi desenvolvida no contexto de suas experiências nas ocupações de praças do movimento 15M na Espanhã. Com a intenficação da crise financeira de 2008, desemprego, políticas de austeridade, cortes nas políticas sociais, e perda de casas/apartamentos (crise das hipotecas), um movimento social de novo tipo toma as ruas e as praças espanholas, interrogando as formas habituais da política e suas instituições. Um movimento de cidadãos comuns, não vinculados a organizações políticas (sindicatos, ongs ou partidos), passa a ocupar e a desenvolver formas de ação política para dar sustentação à vida nas ocupações das praças (essa história é muito complexa, existe ampla bibliografia sobre o tema).

Como manter um acampamento funcionando? O que é necessário? Qual a miríade de trabalhos e cuidados necessários para que aquele agrupamento político exista e possa atuar politicamente? Quais as distinções e hierarquias que emergem? E quais as novas composições que surgem?

Savater contrapṍem a lógica do habitar à lógica do governar. Nesta última, o conhecimento opera por abstrações que se pretendem universais e objetivas. Quanto mais desencarnadas e quanto menos situadas, mais adequado (verdadeiro) seria este conhecimento. Os sentidos e a percepção enganam a razão, o contexto específico bloqueia o universal. A razão prática orienta o conhecer, enquanto a razão prática determina a ação de governo. A realidade deve ser moldada à forma construída pela razão. Projeta-se o que “deve ser” e ação deve adequar a realidade à forma projetada. Este pensamento estratégico, apoia-se numa dissociação entre meios e fins, mas também na dissociação e assimetria entre quem concebe e quem executa: experts x amadores; militantes X trabalhadores, e assim por diante. Governar é fazer dobrar a realidade àquilo que foi projetado pela razão.

O paradigma do habitar é todo o contrário. Não se parte de uma realidade que precisa ser moldada ou preenchida porque algo lhe falta. Ao contrário, a realidade é cheia de possibilidades, potências. Por isso é necessário detectar, ativar os pontos de potência ao invés de projetar. Isso implica uma certa política da atenção, uma certa política do sensível: o quê e como se percebe ou sentimos; e como este sentir-perceber participa do conhecer e do agir no mundo. O problema é desenvolver uma capacidade de habitar o problema, um saber-fazer com o que nos faz. Ao invés de cultivar uma idéia masculina de independência e poder, cultivar uma política feminina da interdepência e da potência. Acompanha-se as situações, elabora-se coletivamente e busca-se expandir a potẽncia da situação. Trata-se, portanto, de partir daquilo que é comum, os mundos compartilhados que precisam ser sustentados. O problema é como ampliar as conexões?

Na segunda parte da aula lançamos a proposta de iniciarmos a constituição dos grupos de trabalho que irão atuar conjuntamente no restante do semestre, para desenvolver uma ação coletiva de pesquisa sobre um tema escolhido pelo grupo. Como formar grupos? Não é um problema trivial. No grupo os estudantes deverão realizar atividades em sala mas também fora dela, num horário extra-faculdade. Poderão realizar atividades de campo que envolvem deslocamentos e a definição de uma agenda comum de trabalhos e tarefas. Além do interesse temático há outros fatores importantes que entram como variáveis na formação do grupo.

Lançado o problema para o turma – “como formar grupos?” – passamos a discutir quais as melhores alternativas para a formação dos grupos: sorteio para evitar os grupismos ou as fronteiras habituais; critérios de interesse temático; afinidade interpessoal; questões de mobilidade (onde moram) e disponibilidade (horário de trabalho etc).

Por fim, na discussão, os estudantes optaram por combinar diferentes critérios. A prioridade acabou sendo pela afinidade pessoal e as possibilidades logísticas (mobilidade e disponilibidade). O tema de interesse ficou como elemento secundário, ou seja, para ser definido pelo grupo formado. Na sequencia, os grupos constituídos realizaram uma rapida discussão sobre um problema de sua escolha. Orientamos os grupos a imaginarem que a escolha do tema-problema de investigação sobre o Comum, deve ter em mente as condições de pesquisa-lo. Ou seja, os estudantes deveriam levar em conta as necessidades de pesquisa que o próprio tema coloca.

Inspirados na proposta do Savater, propomos que nos relacionemos com o problema a partir do paradigma do habitar, logo há todo um modo de conhecer a agir que participará das escolhas do grupo e também do desenvolvimento do problema.